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/série: Euphoria ou o que fazer depois da Orgia?



Vi os 8 episódios de “Euphoria” em pouco mais de 24 horas. Os primeiros 4 numa madrugada e o restante na seguinte. Foi como se tivesse assistindo duas séries. A primeira parte que tem seu ápice no 4 episódio é excelente, ousada, controversa e esteticamente deslumbrante. A partir daí a qualidade cai drasticamente. Como se os criadores tivessem ficado com medo e puxado o freio de mão.

Os temas suscitados por “Euphoria” são contemporâneos e construídos de maneira bastante interessante e contextualizada. É o retrato de uma geração. Estão lá as drogas, o sexo, a masculinidade tóxica, o relacionamento abusivo, a transexualidade, a alienação parental, o aborto e muitos outros. A construção desses temas e dos respectivos personagens é a melhor coisa da série. Como se cada tema/personagem fosse uma peça de uma quebra-cabeça geracional. O problema está na conclusão dos arco dramáticos e seu flerte com um certo moralismo e até mesmo uma autocomiseração, que não combina em nada com os primeiros episódios da série.

Sim, eu compreendo que a aproximação do fim do ensino médio e a entrada numa suposta vida adulta podem trazer essa sensação aos personagens, mas se for isso, também a coisa ficou no meio-termo, nem lá, nem cá. Outra coisa que tem me incomodado muito na maioria das séries é essa inconclusão dos arcos dramáticos em nome de uma segunda temporada. Isso é um balde de água fria. Custa concluir a história que se contou e depois aprofundar isso (ou não) numa eventual próxima temporada? Tem sido uma dinâmica repetitiva. A série começa, você pensa “uau, que série foda, que personagens interessantes, vamos ver onde isso vai dar”... segundo, terceiro episódio mantêm o teu interesse, o quarto você fica alucinada, querendo mais e de repente, o ritmo cai, cai, cai e chega ao último episódio sem o mesmo vigor de antes.

Em “Euphoria” o tema da masculinidade tóxica é abordado através de vários personagens, mas Nate e McKay são dois homens que foram socializados de maneira machista, de forma a reproduzir esse comportamento com as mulheres com as quais se relacionam. Ambos os personagens foram educados por pais que fizeram com que eles acreditassem que são o centro do mundo, que são merecedores de todos os olhares e afeto e que precisam ser fortes se quiserem manter esse interesse do mundo neles. Nate é o garoto bonitão típico jogador de futebol americano, é branco, é padrãozinho, tem pai rico e muitos problemas para expressar sua sexualidade. McKay é o oposto. Por seu negro, seu pai lhe ensina que ele não pode aceitar as provocações racistas de seus colegas. Deve engolir a seco e descontar isso em campo. Ambos crescem com personalidades dissociadas e um grande vazio que nada, nem ninguém aplaca. Nate se relaciona com Maddy, uma garota latina que na infância ganhou vários concursos de beleza. Ele a exibe como um troféu. McKay tem dificuldades de assumir um relacionamento com a garota que gosta, porque ela teve nudes e sex tapes vazadas e todos os seus amigos tiram sarro da situação. A maneira como essa socialização machista repercute na vida de cada um desses personagens é bem diferente, mas o componente tóxico permeia todas as relações. O problema está no desfecho que parece não sai do lugar e enfraquece toda a construção dramatúrgica desses (e de outros) personagens.


Rue, a protagonista, é uma garota viciada em drogas e tem distúrbios bipolares. Ela é narradora da série. Mas sua trajetória não nos desperta tanto interesse quanto de Jules (para usar um exemplo). Não há muita história ali. Ela se droga, quase morre, é internada. Sai da clínica, se droga de novo e assim vai. Nem o entrecho amoroso convence. Porque a dinâmica da dependência prevalece até mesmo nessa história. Não que a atriz seja ruim, não é isso. Mas falta arco-dramático.


As personagens mais interessantes são Jules e Kat, porque eles possuem um enredo e passam por transformações ao longo dos episódios. Jules, garota transexual e tímida que testa sua feminilidade em encontros sexuais com parceiros desconhecidos achados em aplicativos de encontros na internet. Kat, garota gorda e virgem que tem sua sexualidade despertada nas dinâmicas de “dominatrix”. Rue não tem isso. Ela é aquilo e pronto. Pelo menos, essa é a sensação que a séries nos passa. O que nos faz gostar de uma história/personagem é justamente essa trajetória de redenção. E por mais que “Euphoria” se venda como uma série ousada e isso e aquilo (e alguns momentos até é), ela possui uma estrutura clássica, dividida em três atos muitíssimo bem definidos. Temos o incidente inicial (a experiência de quase morte da protagonista por abuso de drogas), depois o motivo da narrativa (Rue vai conseguir se manter longe das drogas?). Ai vem o primeiro ponto de virada (Rue conhece Jules e se tornam amigas) e o Despertar (Rue se apaixona por Jules). Esse é todo o primeiro ato da série.


Depois vem uma sensação de tranquilidade momentânea na Metade do Caminho (Rue para de usar drogas por amor a Jules), para logo depois vir a Queda (Jules parece não corresponder aos sentimentos de Rue). Daí vem o que em dramaturgia se chama Experiência de Morte (Rue entra em colapso ao ver que não é correspondida). Fim do segundo ato.


O terceiro ato começa com um Segundo Ponto de Virada (onde a protagonista tenta desvendar porque Jules mudou de comportamento com ela). Vem o Declínio (ninguém leva ela a sério) e o Clímax (com Jules se apaixonando por outra garota). Todos esses passos devem levar ao que os estudiosos chamam de Transformação. Mas ai pergunto: Qual a transformação de Rue? (Voltar a usar drogas???).


Pra mim, esse é o principal problema de “Euphoria”, que tem um primeiro ato brilhante. Um segundo ato duvidoso e um terceiro ato broxante. Quase todos os personagens acabam basicamente como começaram e isso é um grande desperdício. Pois acredito que se tivesse encerrado os arcos-dramáticos daqueles personagens e progredisse só com Jules, sendo revelada como verdadeira protagonista numa próxima temporada, aí sim, a série poderia marcar época.

Isso não tira os méritos da série, que são muitos. O elenco é bom, a trilha é um achado, a fotografia é deslumbrante. Mas acima de tudo, o maior acerto é o retrato de uma geração que o filósofo francês Baudrillard definiu como pós-orgia. Cuja grande pergunta é o que fazer depois de que tudo parece que já foi vivido?

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