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/série: "Sintonia" ou A Cosmogonia da Ostentação


À primeira vista “Sintonia”, nova série da Netflix, pode parecer frívola e novelesca, mas isso faz parte da estratégia de divulgação e marketing da plataforma. Não se enganem. Ou melhor, permitam-se entrar no fluxo “sem desejo sem memória” que a obra falará por si. De maneira bastante honesta, o que está em jogo aqui é o modus operandis de uma favela brasileira. Estão lá o funk, o tráfico, a igreja evangélica, as amizades e a família. Tudo gira em torno desses temas e muito sabiamente, o idealizador Kondzilla condensa tudo isso em três personagens muitíssimo bem delimitado.

São eles, Doni, Rita e Nando. Cada um com suas particularidades, sonhos, desejos e obstáculos. É a jornada clássica do herói/heroína com uma rítmica contemporânea diferente. Sim, porque o mundo mudou muito desde “Cidade de Deus”, filme expoente dessa gênero favela movie. Talvez o maior diferencial é que apesar de temas pesados e personagens complexos, a jornada é solar e musical. E a série não te enrola e entrega o que promete. Isso é uma qualidade e tanto no meio de tantas séries que ficam te enrolando com temporadas e mais temporadas sem nenhum fechamento de arco dramático.

Esses seis episódios de “Sintonia” contam uma história com começo, meio e fim. Concluindo a trajetória dos seus personagens de maneira interessante e satisfatória. Diante do sucesso, é óbvio que a Netflix produzirá uma segunda temporada, e a série tem um bom material para prosseguir. Mas o fato é que quando sobem os letreiros finais você não se sente enganada pelo que acabou de ver. E repito, isso é uma qualidade e tanto. Principalmente com essa instabilidade diante de tantas séries canceladas no meio, sem um final. É muito frustrante para quem é fã e as emissoras e plataformas deveriam prestar mais atenção a isso. O fato é que “Sintonia” não sofre desse mal.

O trecho mais interessante e corajoso da série é quando mostra a correspondência existente entre os mundos do tráfico de drogas, das igrejas neopentecostais e da ostentação do funk. Todas possuindo relações mediatizadas pelo dinheiro e pelo discurso de irmandade (família). A Teologia da Prosperidade ajudou nessa bizarra aproximação. A doutrina fundamental de que Deus quer que seus fiéis sejam ricos e que ostentem seus bens atraí muitos adeptos, sobretudo num contexto de desigualdade social, abandono do Estado e suas instituições fundamentais e das seduções de um capitalismo tardio e cruel.

Num dos episódios tem uma sequência que mostra como o dinheiro “passeia” pela favela. De mãos em mãos, o dinheiro passa pelo tráfico, pelo tio do churrasquinho, pela mercearia do pai de Doni e pelo dízimo e ofertas dos fiéis no culto. Se antes para ser cristão era necessário passar por uma vida inteira de provação na terra para conquistar um lugar no paraíso (“Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu”), o negócio já não pode mais esperar. É preciso prometer a felicidade no aqui e no agora. Todos gostam e necessitam de dinheiro e curiosamente “Sintonia” foca em três protagonistas inseridos em contextos que rola muita grana. E é tudo mais ou menos como se fosse uma coisa só. O dinheiro do tráfico e das canções seculares pode ser purificado graças aos dízimos e ofertas. Olha que benção!

O modo como tráfico, igreja e funk veem o mundo é bastante parecido. Existe uma guerra e é preciso assumir a parte que nos cabe neste latifúndio. É essa visão de mundo que facilita o trânsito fácil e sem culpa entre elas. Não há culpa. Ou melhor, só há culpa se você não se converte. Se você se converte e coopera com a obra de Deus tudo está perdoado. Algo muito próximo das famosas indulgências, alvo de críticas por parte de Lutero que causou um racha no Catolicismo. Todo o pensamento evangélico surge a partir disso e soa bastante contraditório constatar o retorno dessa prática justamente numa instituição que surgiu a partir de uma radicalização crítica dessa prática.

Outro ponto positivo é que “Sintonia” não romantiza ou demoniza a favela e seus moradores como tantas outras produções por aí. É preciso parar com essa prática. Favelas existem por causa da enorme desigualdade social e sua organização começa lá no pós-Escravidão, quando os negros foram deixados à própria sorte. Essa formação colonial-escravocrata foi varrida para debaixo do tapete e a gente sequer se questiona os seus porquês. Junte-se a isso a batalha espiritual contra tudo o que é considerado de religiosidade e cultura de matriz africana e o discurso do marketing que iguala a todos na condição de meros “consumidores”, temos o ambiente propício para a mutação da “Teologia da Prosperidade” para uma faceta ainda mais radical e extremista: “A Cosmogonia da Ostentação”. Tudo está absolutamente na mesmíssima sintonia, percebem?

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