A cineasta Gabriela Amaral Almeida (@gabrielaamaralalmeida) é uma daquelas raras vozes femininas no nosso cinema brasileiro. Seu segundo longa “A Sombra do Pai” prova sua originalidade e habilidade de extrair terror de situações que fogem do gênero.
Aqui, ela começa com uma situação trágica por natureza; a morte de um ente querido e as consequências do vazio deixado por essa pessoa. Mas não é qualquer ausência. É a morte da mãe de uma garotinha muito pequena. Ela passa a ser cuidada pela tia e o pai se dedica ao sustento da família. Eis aqui o primeiro ponto interessante da obra de Gabriela. Aqui se desenha a típica família brasileira de periferia. O pai trabalha com serviço braçal e quase se mata para colocar um pouco de comida na mesa. A tia solteirona fica responsável pela educação da criança. 'Masculino' e 'Feminino' com rígidas obrigações sociais que parecem seguir à risca alguma cartilha institucional.
A vida segue o seu ritmo, até que tudo desanda novamente quando a tia se casa e vai morar no Centro da cidade e deixa a menina aos cuidados do pai. É aqui que a reflexão da diretora encontra seu ápice. Sem a ajuda de uma figura feminina, o pai da garota se revela um zero à esquerda. Incapaz de cuidar até mesmo de si, a relação acaba por se inverter. É a garota que acaba tendo que cuidar do pai. No trabalho, ele se sente cada vez mais aniquilado pelas exigências capitalistas. Uma onda de demissão assusta todos os empregados. Seu amigo comete suicídio por ter sido demitido e não ter mais como sustentar a mulher e os filhos. O masculino está em crise. Quando se tira o papel de provedor de uma figura masculina, o que sobra? Educados desde a mais tenra infância para performar força/honra, com a função de sustentar e proteger aquelas que historicamente sempre foram tidas como o sexo frágil, o homem se sente perdido. Mas não pode falar sobre isso, porque foram ensinados a não falar sobre seus sentimentos com outrem. O que resta? A violência, talvez... ?
Já Dalva (Nina Medeiros) parece se dar muito bem sozinha. Ela cuida da casa, das compras, do machucado do pai. Nas horas vagas assiste filme de terror na tevê e gosta de fazer pequenas simpatias que sua tia lhe ensinou. Aos poucos, os dons premonitórios da menina vão aparecendo e sua relação com o oculto se estreita para incômodo do pai, que não gosta nada que a menina esteja metida com esse universo místico. Obcecada pelos filmes de mortos-vivos na televisão, ela inicia um ritual para trazer a mãe de volta. O pai se desespera e irrompe em violência. Mais um ponto crítico levantado pela diretora. Quando homens sentem que estão perdendo poder, a violência é uma forma desesperada de retomar o que acreditam terem perdido. Essa é a história do mundo, sobretudo em nossa contemporaneidade, quando o feminismo empodera mulheres e a maioria dos homens foi ensinada que seriam o centro do universo.
Abusando de tom climático, minimalista, a diretora mais sugere do que mostra e esse é um dos muitos acertos do filme. Outro ponto a favor, é que em nenhum momento, o filme cai no susto pelo susto, o que seria uma cópia do pior cinema de horror americano. Tudo aqui é sugestivo e original. Gabriela brinca com os símbolos e extrai cenas que flertam muito com o cinema do tailandês Apichatpong Weerasethakul. Sobretudo, por dar tratamento realista ao que seria considerado fantasia. Se lá, ele tem a serenidade budista, aqui temos o sincretismo religioso. Tanto lá quanto cá, nada é gratuito, busca-se o transcendental. E é essa sensação que “A Sombra do Pai” nos deixa.
Em Ribeirão Preto
Cinépolis Santa Ursula: sessão às 20h15
Cinépolis Iguatemi: sessão às 20h30
(Em cartaz no cinema até a próxima quarta-feira, 22)
Trailer do filme: https://www.youtube.com/watch?v=7dgXpOuz0GQ
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